quarta-feira, 2 de abril de 2008

O Grande Deus

Frei Betto

Ele é objeto da crença de milhões de mortais. Transcende a nossa realidade fugaz, dotado que é de onipresença, onipotência e onisciência. Sabe o que nos convém, ainda que a nossa parca compreensão não capte seus mistérios. Ele governa as nossas vidas e faz o feio ficar belo, o velho novo, o caro barato. Transforma o bandido em autoridade venerável; o especulador em mestre sagaz; o agiota em senhor de direitos. Por ser sagrado, não suporta a intervenção do Estado, um poder profano, nem admite dúvidas ou críticas, pois é digno de fé. Ele se irrita com os nossos erros, reage mal aos nossos equívocos e se compraz quando damos ouvidos aos seus sacerdotes. Suscetível, por vezes fica sumamente nervoso diante de acontecimentos que lhe desagradam ou, pela voz de seus profetas, manifesta tranqüilidade quando os ventos sopram a seu favor. Ele é o caminho, a verdade e a vida. Seu poder é legitimado por milhares de oráculos que, especializados em sua teologia, tratam de explicar, numa linguagem hermética, como ele é, age, abençoa ou amaldiçoa, oscila ou revela-se estável. Insaciável, ele se alimenta de guerras e da fome alheia, manipula a economia dos povos do mundo, transporta fortuna para além das fronteiras, demonstra apetite glutão por riquezas alheias. Fora dele não há salvação. Ele se arvora em única porta de salvação e felicidade perpétua. Só ele, em sua infinita sabedoria, nos aponta o caminho do céu. Aqueles que nele não confiam são condenados ao desterro da pobreza, à exclusão de uma vida infernal, ao estigma do fracasso e da despossessão. Não se pode vê-lo. Mas está presente em toda parte: no sorvete da criança e na flor oferecida na esquina; no avião do banqueiro e no punhado de farinha com que o camponês engana a fome; nas relações empresariais e conjugais; nos tratados diplomáticos e nos funerais. Nele, Poe ele e com ele as coisas adquirem valor; as pessoas, dignidade social; as comunicações, brilho, e o que é mentira se transubstancia em verdade, o que é errado, em correto, o que é mal, em bem. Ele conduz os nossos passos, conhece as nossas mais íntimas aspirações, promete saciar os nossos mais profundos desejos. Cheio de artimanhas, ele nos cerca por toda parte, e seus olhos publicitários jamais nos abandonam, seja na cultura, na traseira do ônibus, no programa de TV, na sacola de compras, nas páginas dos jornais. Ele é o deus Mercado, frente ao qual todos os joelhos neoliberais se dobram, incensando-o com a alta taxa de juros, a evasão de divisas, a dependência externa. Seus templos possuem portas eletronicamente controladas e são protegidos pela vigilância permanente de guardas. Seus missionários fiscalizam minuciosamente as contas dos países, determinam medidas impopulares, salvam contas ainda que o sacrifício de vidas. Essas são imoladas em seu altar de ouro todas as vezes que o seu poder é ameaçado. Se contrariado, ele faz quebrar famílias, empresas, nações. Antievangélico despreza a solidariedade e exalta a competitividade; repudia a partilha e canoniza a ganância; humilha a pobreza e consagra a riqueza como supremo bem. Idolatrado, cerca-se de discípulos fiéis que jamais logram ver o mundo com olhos da compaixão e da justiça. Seus acólitos tremem diante da oscilação de seus humores e mantêm presunçosa indiferença frente ao drama de multidões famintas. Há muitos séculos, numa cidade do Oriente Médio, ele condenou à morte um homem que ousou, com chicote à mão, derrubar os que conspurcavam o templo com o tilintar de moedas que, a seus ouvidos, soavam como deleitável música. Levou à cruz um Deus no qual ele, hoje, professa confiança, desde que não interfira em seus negócios. Aliás, agora ele professa em vão o nome desse Deus, para encobrir e legitimar os horrores que pratica.

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